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“Metodologia Científica na Prática”, de autoria de Superdotado Álaze Gabriel.
Disponível
em http://metodologiacientificanapratica.blogspot.com.br/
Autoria:
Reinaldo
Furlan. Departamento de Psicologia e Educação
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto
USP.
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto
USP.
RESUMO
O
objetivo deste artigo é introduzir e estimular a reflexão sobre a natureza do
conhecimento científico. A intenção não é dogmática, no sentido de dizer o que
é a metodologia científica, mas apresentar questões que estão na base da
discussão de sua fundamentação e que rompem com a aparente certeza do senso
comum sobre a natureza do conhecimento científico: a relação entre história da
ciência interna e externa, a crítica à noção de indução, o papel da teoria na
observação, o princípio de verificação. Privilegia-se nessa apresentação as
duas principais teorias que polarizaram as discussões da filosofia da ciência
nas últimas décadas, as teorias de Popper e de Kuhn sobre os fundamentos da
metodologia científica.
Palavras-chaves:
filosofia da ciência; metodologia científica.
INTRODUÇÃO
A
História da Ciência procura analisar na sua seqüência os fatos científicos: os
contextos das descobertas, as crises teóricas, as substituições e
desenvolvimento de teorias. É comum serem encontradas duas perspectivas
contrárias de análise do desenvolvimento histórico do conhecimento científico,
uma que corresponde à história interna e outra à externa. A título de
introdução, pode-se dizer que os adeptos da história interna concebem o
desenvolvimento do conhecimento a partir de questões intrínsecas à
racionalidade científica, e concedem à história externa apenas o papel de
circunstanciá-lo. Pressões externas à evolução da Ciência, como a alocação de
recursos para áreas de interesses econômicos ou sociais, podem limitar ou
promover a construção do conhecimento em determinadas áreas, mas este obedece a
uma lógica própria que independe desses e de outros fatores externos a sua
racionalidade. Os adeptos da história externa, em contrapartida, advogam que a
lógica ou racionalidade científica não apresenta razões suficientes para o
desenvolvimento do conhecimento, que em última instância repousa em fatores
psicossociais presentes no seu exercício.
Pretende-se
mostrar que a História da Ciência não pode mais ser vista como uma coleção de
práticas e de teorias bem sucedidas e acumulativas, uma imagem freqüentemente
passada pelos manuais, mas que a ciência está prenhe de questões filosóficas,
tanto quanto a reflexão filosófica é banhada de História, e que não se deve nem
reduzir a História da Ciência à Filosofia - quando se trata de explicitar o
sentido disso que se chama ciência - nem de recusar, em contrapartida, a
discussão filosófica de seus termos. Espera-se que a exposição e discussão de
alguns dos termos freqüentemente associados à prática científica possam servir
de ilustração e incentivar a reflexão.
O
foco estará nas ciências naturais, particularmente a física, cujo sucesso
histórico fez dela o modelo mais destacado1.
E há um ganho geral em iniciar a reflexão a partir da noção mais canônica de
ciência, a concepção mais aceita de conhecimento.
A
CRÍTICA AO CONCEITO DE INDUÇÃO
Um
dos termos mais usados para distinguir a ciência de outras atividades seja o de
que o seu conhecimento está baseado em observação.
Francis
Bacon, teórico lembrado freqüentemente, dizia que o método científico é um
método de observação, que deveria ser rigorosa e isenta de preconceitos. Bacon
identificava quatro estados ou atitudes perniciosas ao conhecimento científico:
1- a tendência à generalização apressada, própria da natureza humana, a que deu
o nome de Ídolos da Tribo; 2- atitudes referentes aos fatos, provenientes da educação,
a que deu o nome de Ídolos da Caverna; 3- as distorções dos significados das
palavras no uso vulgar, a que deu o nome de Ídolos da Praça do Mercado; 4- os
dogmas e métodos provenientes da filosofia, aos quais deu o nome de Ídolos do
Teatro.
Bacon
acreditava na possibilidade de uma experiência despida dessas interferências
que distorciam seu verdadeiro sentido, a ser conquistado pela atitude
científica. Cautela na observação, suspensão das idéias recebidas da educação,
cautela e precisão no uso da linguagem, e o desenvolvimento de experiências
criadas especificamente para atender aos fins da interrogação científica (o
que, se não representava uma novidade estrito senso na época, marcaria cada vez
mais a prática da ciência posterior), eram os ingredientes do receituário
baconiano para a atitude científica. A partir dessas observações a ciência
deveria inferir gradualmente os princípios mais gerais da natureza. Sendo
assim, o conhecimento científico poderia ser certo e seguro, e por isso ele não
admitia hipóteses na Ciência, sobretudo aquelas da metafísica que visavam às
razões últimas das coisas, e que ultrapassavam as passíveis de experimentação.
Popper
(1959, 1999) não foi o único, nem o primeiro, a realizar a crítica do princípio
da indução na explicitação do método científico, mas a sua talvez seja a mais
popular entre nós. O autor aceita, do ponto de vista lógico, a crítica de Hume
ao princípio de indução, isto é, de que a partir da observação da regularidade
de determinados eventos, não é possível prever com alto grau de certeza a mesma
sucessão de eventos. Do ponto de vista lógico, não é necessário que assim seja:
não é porque se viu 1000 gansos brancos que o próximo também será branco, não é
porque o sol se levanta e se põe a cada dia, que se pode prever que amanhã o
mesmo ocorrerá. Tais fatos não são necessários do ponto de vista lógico, uma
vez que do particular (ocorrências datadas e situadas) não se pode inferir com
necessidade o universal, que é o que interessa à ciência na elaboração das leis
da experiência.
Isso
fica bem claro na crítica de Hume à noção de causalidade, um dos pontos
interessantes e duradouros de seu pensamento na Filosofia da Ciência. Embora
Popper não concorde com a análise psicológica humeana da experiência, pois
assinala que com animais e crianças basta uma única experiência para se
estabelecer o vínculo de sucessão entre alguns eventos; o fato é que o desafio
de Hume aos racionalistas da época continua vivo até hoje, isto é a
impossibilidade de descobrir baseado apenas na razão porque o evento
"B" sucede sempre ao evento "A", porque, por exemplo, os
corpos se atraem, ou a cafeína dilata as artérias, ou tal vírus de determinada
composição química é nocivo ao organismo, ou o amido é assimilado pelas células.
Tudo o que se sabe é que assim tem ocorrido, mas não porque tem que ser assim.
Em outros termos, se o pensamento pudesse descobrir as razões intrínsecas à
sucessão dos eventos, estabeleceria, dadas as mesmas condições, leis
necessárias; na sua falta, apenas se apoia no costume, de que de fato as coisas
têm se sucedido assim.
Mas
a crítica interessante de Popper ao princípio de indução não parece ser essa do
ponto de vista lógico, porque a crença na regularidade necessária dos
fenômenos, fundada ou não logicamente, é a condição de possibilidade da própria
ciência. Fossem os eventos sempre aleatórios na sua sucessão, não caberia
estabelecer lei alguma, e talvez a própria vida não acontecesse. O caos se
encontra, nesse sentido, na antípoda da ciência, cuja existência depende, pois,
de se poder estabelecer (arbitrariamente ou não, do ponto de vista lógico) a
ordem dos fenômenos. É isto que leva a propor enunciados universais da ciência
que se testa, depois, através da experiência.
A
crítica mais interessante consiste em afirmar que a indução é um mito, não
apenas do ponto de vista lógico, mas da prática científica. Popper diz que não
se espera a repetição ou a sucessão de eventos para, então, indutivamente,
chegar a conclusões sobre os problemas. Salta-se para hipóteses arriscadas que
são testadas depois passo a passo. Sobretudo, diz ele, a experiência científica
não consiste na observação aleatória e genérica do que acontece - o que não
levaria a parte alguma -, mas ela diz respeito à organização de experimentos
que visam responder às perguntas e testar as hipóteses.
É
a razão, portanto, que se adianta na formulação de questões, de hipóteses e no
planejamento de experimentos para a sua solução. Ou seja, ninguém inicia uma
observação científica sem uma teoria, e basta a seleção de alguns elementos que
se considera relevantes para o problema, para indicar a sua presença, ainda que
rudimentar. A possibilidade de uma experiência pura, na qual as idéias
surgissem das impressões sensíveis, independentes de qualquer interpretação, é
um mito, e nele se apóia o princípio da indução no conhecimento científico.
Ora, segundo Popper, a motivação para esse mito decorre da intenção de se
demarcar o conhecimento científico de enunciados pseudo-científicos,
apoiando-os na observação. Mas, segundo ele, a Astrologia também se baseia na
observação (dos astros) e nem por isso seus enunciados são considerados
científicos. Um critério de demarcação deve existir, de modo a contornar o
problema lógico da indução, isto é, não se pode logicamente inferir proposições
universais a partir de particulares, mas é possível deduzir proposições
particulares de universais. Assim, a ciência consiste de conjecturas ou
enunciados universais na solução dos problemas, e a partir deles fazer a
dedução da ocorrência de fatos que, caso não ocorram, contradizem o enunciado
geral, falsificando a teoria proposta.
Popper
contorna, assim, o problema da indução colocado por Hume, de que não é possível
inferir proposições universais de experiências particulares, ao mesmo tempo em
que separa enunciados científicos de não científicos. O aspecto da crítica,
pois, a ser enfatizado é esse de que o método indutivo estaria na origem das
teorias científicas, ignorando a importância da presença de hipóteses e teorias
para a organização da experimentação.
Hempel
(1981) também aponta para isto, embora de forma mais condescendente com o
método indutivo, enfatizando que os dados empíricos só podem ser relevantes
para uma hipótese, e não para um problema, o que fica claro quando ele analisa
a investigação da febre puerperal pelo médico húngaro I. Senemelweis no
hospital geral de Viena entre os anos de 1844 a 1848.
Tratava-se
de uma doença, geralmente fatal, após o parto na maternidade do hospital, que
contava com duas alas na maternidade, uma atendida por professores e alunos de
medicina, e outra por enfermeiras parteiras, sendo os números
significativamente maiores na ala dos médicos e estudantes. Curiosamente,
mulheres que davam à luz a caminho da maternidade, para depois serem atendidas
na ala dos médicos, em geral não contraíam a doença. Senemelweis começou a
investigar as diferenças entre as duas alas, para descobrir a causa do mal. Não
aceitava, naturalmente, que a causa estivesse no médico simplesmente pelo fato
de ser médico, e não uma enfermeira. O problema da doença encontrava-se, assim,
na presença de inúmeros dados empíricos que, na ausência de hipóteses,
representavam apenas uma multiplicidade de informações sem nexo.
Várias
hipóteses foram consideradas. A primeira foi referente ao padre estar sempre na
ala dos médicos, solicitado para dar a extrema-unção, ou seja, a presença do
"símbolo da morte" poderia ser nociva à recuperação das outras
pacientes; eliminou-se a passagem do padre, mas o problema persistiu. Em
seguida, investigou-se a questão da diferença na posição de realização do
parto, já que na ala dos médicos, ele era sempre feito com a paciente deitada,
e na outra ala, geralmente de cócoras; eliminada a diferença não houve mudança
no aparecimento da doença. Certo dia, um colega médico acidenta-se com o
bisturi, realizando a autópsia de uma das vítimas, e morre (não se conhecia, na
época, o papel dos microorganismos nas doenças). Senemelweis pensa, então, na
hipótese de que o bisturi utilizado nas autópsias e nas aulas (o que não ocorria
na ala das enfermeiras, e nem era o caso para a maioria das mulheres cujos
filhos nasciam a caminho da maternidade) era o agente transmissor da doença,
causada por "matéria cadavérica contaminada". A higienização dos
bisturis ocasionou a redução do número de mortes, mas a diferença entre as alas
ainda permanecia significativa, até se descobrir, finalmente, que mesmo
pacientes contaminados podiam transmitir a doença, e que os bisturis deveriam
ser higienizados para cada paciente. Chegou-se à conclusão que a causa da
doença seria a "matéria pútrida ou contaminada retirada de um organismo
vivo ou morto".
Hempel
chama a atenção para o fato de que, sem a criação de hipóteses, o método
indutivo não pode ser operante, isto é, que ele depende de hipóteses que discriminam
elementos relevantes para o problema, para então verificá-las indutivamente.
Mas,
como para Popper a passagem das experiências (ou problemas) para as teorias não
pode ser justificada indutivamente (lógica da descoberta), jamais se garante
que as teorias sejam verdadeiras, mesmo depois de sua aprovação através de
testes realizados para sua avaliação, uma vez que o problema da indução se
colocaria novamente: seria preciso a realização de todos os casos que
colocassem em teste a teoria, o que é impossível de ser feito (ter-se-ia que
abarcar o universo em sua extensão e duração), restando assumir que enquanto os
testes ou experiências não contrariam as teorias, elas continuam valendo como
conhecimento.
O
critério popperiano de demarcação da ciência passa, assim, a exigir que toda
teoria com pretensão de cientificidade possibilite a dedução de proposições
que, se ocorrerem, a falsifiquem, ou, que proíba o aparecimento de certos
fatos, sendo tanto melhor quanto mais proíbe, ou maior seu conteúdo empírico.
É
por não especificar condições de falsificação que a Psicanálise, aos olhos de
Popper, não é ciência, aproximando-se mais da linguagem dos mitos, e não é
virtude, visto que seu poder de explicação não é acompanhado da proibição da
ocorrência de fatos que a falsifiquem. A Psicanálise explica muito, mas é
irrefutável e não pode ser testada ou confrontada. O marxismo, ao contrário,
fixou as condições em que sua teoria seria refutada, através da necessidade de
desenvolvimento do modo de produção capitalista para a ocorrência da revolução
socialista; no entanto, a união soviética pulou essa etapa, o que teria
refutado a teoria. Mas, segundo Popper, os marxistas fizeram modificações ad
hoc para acomodar a teoria aos fatos, alterando hipóteses básicas que
comprometeram o seu caráter lógico-dedutivo.
Para
Popper existe a possibilidade de criação de hipóteses auxiliares, na tentativa
de se salvar uma teoria, mas as alterações devem levar à previsão de fatos
novos (falseáveis) e não ao enfraquecimento da estrutura lógica da teoria. Um
dos exemplos na história da ciência, nesse sentido, foi a confirmação da teoria
newtoniana da gravitação com a descoberta do planeta Netuno. Segundo Chalmers
(1993)
"as
observações do século XIX sobre o movimento do planeta Urano indicavam que sua
órbita se afastava consideravelmente da que fora prevista com base na teoria
gravitacional de Newton, colocando assim um problema para esta teoria. Numa
tentativa de superar a dificuldade, foi sugerido, por Leverrier na França e por
Adams na Inglaterra, que existia um planeta que ainda não fora detectado nas
adjacências de Urano. A atração entre o planeta hipotético e Urano deveria
explicar o afastamento deste último de sua órbita prevista inicialmente. Esta
sugestão não era ad hoc, como os eventos demonstrariam. Seria possível
calcular a adjacência aproximada do planeta conjectural se ele tivesse um
tamanho razoável e fosse responsável pela perturbação da órbita de Urano"
(p.82).
A
descoberta de Netuno, nesse sentido, não só corroborou a teoria, como trouxe um
conhecimento novo. Em síntese, não há para Popper lógica da descoberta
científica, já que se nega o princípio da indução, há apenas a da justificação.
O processo de descoberta é objeto para ciências empíricas (psicologia ou
sociologia), não para uma epistemologia que cuida apenas do caráter lógico
da teoria. Tudo vale na formação de teorias: insights, intuição, imaginação,
observações controladas, e até mesmo sonhos que sugerem soluções para o
problema pesquisado, como teria sido o caso da descoberta da fórmula química do
benzeno, por Kekulé. Embora Popper procure enfatizar o caráter ativo e
organizador da razão, não é objeto da epistemologia perguntar como se chega às
hipóteses e conclusões, mas distinguir enunciados científicos de
pseudo-científicos através da lógica da justificação: pode-se deduzir de
enunciados gerais os particulares (ocorrência de fatos) e confrontá-los com a
experiência. A grande questão da epistemologia é a da demarcação do
conhecimento, e só uma lógica da justificação pode fornecer a solução desse
problema.
O
pensamento de Popper é uma das expressões contundentes da passagem da física
newtoniana para a de Einstein. O Deus de Descartes, que garantia como critério
de verdade a evidência do pensamento, foi substituído por uma noção de
conhecimento mais dinâmico e provisório, sendo o conhecimento humano também
limitado, mas noutro sentido: de um lado porque existem coisas que o
entendimento não pode conhecer com clareza, como, por exemplo, a união da alma
e do corpo, e de outro porque o conhecimento é inesgotável dada a infinitude do
universo a conhecer. Mas, o que se sabe de forma clara e distinta é certo e
indubitável, o que implica em ter o conhecimento concebido como uma construção
progressiva de certezas. Ora, o conhecimento científico questionou justamente a
idéia de verdades adquiridas, de forma que parecem se multiplicar as
possibilidades de variação das perspectivas sobre o real, conquanto se possa,
ainda, sustentar a idéia de um progresso no conhecimento. Em outros termos, a
história da ciência não podia mais ser vista como um processo de acumulação sem
sobressaltos e rupturas.
A
RAZÃO CIENTÍFICA EM QUESTÃO
Um
dos teóricos proeminentes do século XX, que enfatizou as rupturas na história
da ciência, foi sem dúvida Thomas Kuhn. Seu pequeno, mas estimulante livro A
Estrutura das Revoluções Científicas (1992), constituiu-se em um marco de
referência para filósofos e historiadores da ciência e sua obra representa, em
relação à de Popper, um enfoque mais voltado para as práticas das comunidades
científicas, do que propriamente para os fundamentos lógicos de suas teorias.
Os críticos de Popper o acusam de propor um padrão metodológico que não
corresponde à prática da ciência e ele, por sua vez, insistia no papel ativo da
crítica metodológica como contribuição da epistemologia à pratica da ciência.
Esse caráter explícito de orientação não se encontra na obra de Kuhn, que se
propõe, sobretudo a um relato histórico do desenvolvimento da ciência. É
verdade que Feyerabend (1977) levanta a questão de saber se a obra de Kuhn
aconselha ou não o cientista à determinada conduta, afirmando que ele é ambíguo
quanto a isso. De fato, ao julgar que é um sinal de maturidade da ciência a
ausência de discussões a respeito de suas teorias, o que propicia o
desenvolvimento exaustivo do paradigma, (a acumulação de conhecimento sobre a
realidade no interior de determinada visão de mundo), Kuhn parece incentivar a
atitude acrítica do cientista2.
De qualquer forma, não se encontra em Kuhn, como em Popper, a declaração de
intenção de orientação da prática científica através da análise metodológica.
Ou seja, a obra do primeiro é de caráter mais histórico ou descritivo do que a
do segundo. No posfácio de 19693,
Kuhn enfatiza, inclusive, que se tivesse que rescrevê-la, começaria pela
análise das estruturas das comunidades científicas, o que merecia cada vez mais
a atenção dos historiadores e sociólogos da ciência.
A
obra de Kuhn pode ser vista como uma crítica à visão popperiana de ciência.
Três pontos podem ser destacados: 1) a tese da incomensurabilidade das teorias,
vista por seus críticos como uma afirmação do relativismo ou do irracionalismo
na história da ciência, 2) a necessidade da ciência normal, que representa a possibilidade
de exploração máxima de um paradigma, isto é, de seu desenvolvimento teórico e
instrumental 3) a presença constante de anomalias nas teorias científicas, com
o que se critica, do ponto de vista histórico, a metodologia falsificadora da
ciência.
Antes
de tudo, é preciso deixar clara a noção que popularizou Kuhn na história das
ciências, que é a de "paradigma", que representa o pressuposto comum
de uma comunidade científica, que envolve determinada concepção de mundo e um
conjunto de regras de procedimentos de pesquisa. A concepção de mundo abarca
desde uma visão mais geral acerca da realidade, até teorias específicas da área
de pesquisa. Os manuais de ciência são um bom exemplo dessas teorias
compartilhadas pelos membros de uma comunidade científica, que todo ingressante
deve assimilar naturalmente em sua formação. Regras de procedimento são aquelas
aceitas, como metodologia de coleta de dados, apresentação de resultados,
utilização de instrumentos. Em síntese, o paradigma é a base comum de acordo da
comunidade científica, a partir da qual se desenvolvem suas pesquisas e a
discussão de suas questões, e é o que Kuhn chama de teoria, no sentido amplo do
termo, para enfatizar que a ciência normal não a toma como foco, isto é, não
está interessada em discuti-la, mas em resolver quebra-cabeças que são questões
presentes no desenvolvimento da aplicação do paradigma à realidade. Kuhn
(1962,1992) diz:
"A
ciência normal não tem como objetivo trazer à tona novas espécies de fenômeno;
na verdade, aqueles que não se ajustam aos limites do paradigma freqüentemente
nem são vistos (...) Em vez disso, a pesquisa científica normal está dirigida
para a articulação daqueles fenômenos e teorias já fornecidos pelo paradigma
(...) Talvez essas características sejam defeitos. As áreas investigadas pela
ciência normal são certamente minúsculas; ela restringe drasticamente a visão
do cientista. Mas essas restrições, nascidas da confiança no paradigma,
revelaram-se essenciais para o desenvolvimento da ciência. Ao concentrar a
atenção numa faixa de problemas relativamente esotéricos, o paradigma força o
cientista a investigar alguma parcela da natureza com uma profundidade e de uma
maneira tão detalhada que de outro modo seriam inimagináveis" (p.45)
Nesse
sentido,
"a
ciência normal, atividade que consiste em solucionar quebra-cabeças, é um
empreendimento altamente cumulativo, extremamente bem sucedido no que toca ao
seu objetivo, a ampliação contínua do alcance e da precisão do conhecimento
científico" (idem, p.77).
Portanto,
uma opção metodológica que se revelou frutífera. Kuhn alude, mais à diante, a
um critério mais racional do que esse na justificação dessa opção:
"Uma
vez que a natureza é muito complexa e variada para ser explorada ao acaso, esse
mapa é tão essencial para o desenvolvimento contínuo da ciência como a
observação e a experiência" (p.143).
A
profusão de teorias e de discussões metodológicas representaria apenas o
período pré-paradigmático de uma ciência, que só se desenvolve com o
estabelecimento de um paradigma e a cessação dessas discussões, isto é, a
partir do consenso sobre o método e a natureza do objeto de estudo.
Como
o objetivo da obra de Kuhn é, em primeiro lugar, a apresentação histórica do
caráter geral do desenvolvimento da ciência, críticas à sua apresentação da
ciência normal teriam de ocorrer na discussão da própria história. De fato, o
que se contrapõe à sua visão é que, a despeito de tocar em aspectos
importantes, ela ignora ou elide a ocorrência de discussões teóricas no
exercício da ciência. Feyerabend (apud Lakatos & Musgrave, 1979) cita,
contra o monopólio do paradigma, a proliferação de teorias na história da
ciência, com pontos de vista diferentes, incompatíveis e até incomensuráveis,
cuja interação pode promover a emergência de outras tantas. É o que acontece,
segundo ele, entre os pontos de vista da mecânica, da teoria do calor e da
eletrodinâmica que derrubaram a física clássica. Portanto, Kuhn teria visto
mais ordem do que de fato existe naquilo que chamou de ciência normal. Mas,
algo muito importante levantado por ele e imediatamente aceito pelos
historiadores e teóricos da ciência, foi a presença comum de anomalias nas
teorias científicas, sem que isso representasse uma crise; tanto erros de
precisão quantitativa na medição dos fenômenos, quanto qualitativa, no sentido
de incompatibilidade da teoria com a experiência4
E nada disso representa, necessariamente, uma crise e teria sido uma das
críticas mais importantes ao modelo metodológico de desenvolvimento das
ciências proposto por Popper que enfatiza a tentativa de falsificação de uma
teoria como a mola propulsora do desenvolvimento da ciência. Enquanto conselho
metodológico, a idéia pode ser muito atraente, mas a questão é saber em que
medida ela expressa o desenvolvimento histórico da ciência, e mesmo se o
propicia, caso seja aceita.
O
lado atraente - Popper salienta dois aspectos no desenvolvimento da ciência: a)
conjecturas teóricas arriscadas b) refutação de teorias estabelecidas. Chalmers
(1993)5
afirma que não se aprende, ou se aprende muito pouco, com conjecturas
cautelosas, porque estas mais confirmam o conhecimento atual do que
possibilitam avanços significativos nas teorias; elas são sempre conservadoras.
Conjecturas arriscadas, ao contrário, rompem com a maneira comum de pensar, e
por isso, quando confirmadas, representam avanços significativos. Assim, quando
as previsões de Einstein sobre a curvatura da luz sob efeito de forte atração
gravitacional foram confirmadas por Eddington, a teoria passou por um
importante teste de falsificação que corroborou o seu avanço em relação à
concepção anterior. Na refutação das teorias a relação se inverteria, isto é a
negação das arriscadas não ensina nada, obviamente, mas quando ocorre a
refutação das bem estabelecidas, que passaram por muitos testes de "verificação",
Chalmers (1993) diz que:
"um
novo problema, auspiciosamente bem distante do problema original resolvido,
emergiu. Este novo problema pede a invenção de novas hipóteses, seguindo-se a
crítica e testes renovados" (p.73)
Assim,
"a
falsificação da teoria de Einstein permanece um desafio para os físicos
modernos. Seu eventual sucesso assinalaria um novo passo na direção do
progresso da física" (idem, p.76-77).
Daí
a insistência de Popper nas tentativas de falsificação de teorias bem
estabelecidas, pois ela é a responsável pelo avanço do conhecimento. Ou seja,
um falsificador não está interessado em preservar teorias, mas em refutá-las.
Não
é difícil notar que Popper privilegia os momentos de crise ou ruptura na
história das ciências. Como ele enfatiza no prefácio de Conjecturas e
Refutações (1963, s/d), aprende-se com os erros, e é assim que a ciência
progride. Kuhn, por sua vez, fez notar primeiro que, dessa forma, elide-se o
cotidiano da prática científica, muito mais voltada para atividades "corriqueiras"
de solução de quebra-cabeças no interior do paradigma, o que ressalta a
importante relação da ciência com o desenvolvimento de tecnologias6.
Em segundo, que os grandes acontecimentos na história da ciência não são
decisivos no sentido em que
Popper procura mostrar, não sendo o destino de uma teoria
científica jogado "em uma ou duas rodadas de cartas", mas muito comum
a presença de anomalias na sua comparação com a realidade, interpretadas ora
como um problema de quebra-cabeças, isto é, solucionáveis no interior do
próprio paradigma, ora simplesmente ignoradas e que portanto não existem experimentos
cruciais no desenvolvimento da ciência.
Esse
ponto da teoria de Kuhn foi muito bem desenvolvido por Lakatos, que propôs, em
substituição ao critério popperiano de falseabilidade, a idéia de programas
de investigação como metodologia das teorias científicas7,
que consiste em um núcleo teórico que deve orientar as pesquisas futuras para o
seu desenvolvimento. Esse direcionamento é indicativo e proibitivo ao mesmo
tempo. A heurística positiva representa o primeiro aspecto, e dirige as
pesquisas no sentido de aplicação da teoria à realidade, conduzindo, se o
programa tem êxito, à descoberta de fatos novos e ao desenvolvimento de teorias
auxiliares. A heurística negativa diz respeito ao aspecto 2, e consiste na
proibição de se questionar o núcleo básico da teoria, representando a
tenacidade do programa, sua persistência, a despeito das anomalias ou
incongruências com a experiência. A teoria não é falsificável no núcleo básico,
está protegida por um cinturão de hipóteses auxiliares, "que tem de
suportar o impacto dos testes e ir se ajustando e reajustando, ou mesmo ser
completamente substituído, para defender o núcleo assim fortalecido"
(Lakatos & Musgrae, 1979, p.162).
Um
programa de pesquisa é progressivo quando, ao menos intermitentemente, leva à
descoberta de fatos novos, isto é, enquanto seu desenvolvimento teórico
antecipa o empírico; é degenerativo se não consegue oferecer mais do que
explicações post-hoc. De qualquer forma, seu sucesso ou fracasso não
pode ser decretado por esta ou aquela experiência crucial. Daí Feyerabend
(1977) concluir, citando Lakatos, que
"surgida
uma teoria nova, não cabe, de imediato, recorrer aos padrões costumeiros para
decidir se ela sobreviverá ou não. Nem gritantes incoerências internas, nem
óbvia ausência de conteúdo empírico, nem amplo conflito com resultados
experimentais deve impedir-nos de conservar e aperfeiçoar pontos de vista que,
por esta ou aquela razão, nos agrade" (p.287).
Há
um exemplo hipotético imaginado por Lakatos, aparentemente à luz da descoberta
do planeta Netuno, que ilustra bem a idéia de tenacidade de um programa de
pesquisa, e a recusa do critério falsificador como metodologia da ciência. Chalmers
(1993) diz:
"A
história é sobre um caso imaginário de mau comportamento planetário. Um físico
da era pré-einsteiniana toma a mecânica de Newton e sua lei da gravidade, N,
como as condições iniciais aceitas, I, e calcula, com sua ajuda, o percurso de
um pequeno planeta recentemente descoberto, p. Mas o planeta desvia-se do
percurso calculado. Por acaso, nosso físico considera que o desvio era proibido
pela teoria de Newton e portanto que, uma vez estabelecido, refuta a teoria N?
Não. Ele sugere que deve haver um desconhecido planeta p', que perturba o
percurso de p. Ele calcula a massa, órbita, etc. de seu hipotético planeta e
pede então a um astrônomo experimental que teste sua hipótese. O planeta p' é
tão pequeno que mesmo os maiores telescópios disponíveis não podem observá-lo;
o astrônomo experimental pede uma verba para construir um ainda maior. Em três
anos o novo telescópio está pronto. Se o desconhecido planeta p' for descoberto
será uma nova vitória para a ciência newtoniana. Mas não é. E nosso cientista
abandona a teoria de Newton e sua idéia de um planeta perturbador? Não. Ele
sugere que uma nuvem de poeira cósmica esconde-nos o planeta. Calcula a
localização e as propriedades dessa nuvem e pede uma verba de pesquisa para
mandar um satélite testar seus cálculos. Se os instrumentos do satélite
(possivelmente de tipo novo, baseados numa teoria pouco testada) registrarem a
existência da nuvem conjectural, o resultado será visto como uma notável
vitória para a ciência newtoniana. Mas a nuvem não é descoberta. O nosso
cientista abandona a teoria de Newton, junto com sua idéia do planeta
perturbador e a idéia da nuvem que o esconde? Não. Ele sugere que há algum
campo magnético naquela região do universo que perturbou os instrumentos do
satélite. Um novo satélite é enviado. Se o campo magnético for encontrado, os
newtonianos celebrarão uma vitória sensacional. Mas ele não é. Isto é visto
como uma refutação da física newtoniana? Não. Ou uma outra engenhosa hipótese é
proposta ou... a história toda é enterrada nos valores empoeirados de
publicações periódicas e a história nunca mais será mencionada" (p.96-97).
Mas,
em certo sentido, Lakatos está mais próximo de Popper do que de Kuhn. Uma das
maiores diferenças dele com Kuhn é que, enquanto este privilegia a história
psicossocial no desenvolvimento da ciência, e aponta incisivamente para a incomensurabilidade
dos paradigmas, Lakatos pretende encontrar os fios da racionalidade na história
da ciência. A distinção lakatosiana entre história interna e externa da ciência
é justamente para marcar essa posição. Ele defende, como Popper, a idéia de um
progresso determinado por avaliações racionais na solução de seus problemas e
na substituição de teorias. A distinção entre programas progressivos e
degenerativos é um indicador de avaliação. As idéias popperianas de maior
conteúdo empírico de uma teoria sobre outra, de resistência a testes em que a
precedente fracassou, de maior poder explicativo da sucessora são também
incorporados pela metodologia lakatosiana.
Ora,
a crítica mais comum que se faz a Lakatos é de que a metodologia dos programas
de pesquisa não fornece critérios decisivos para a avaliação de teorias. Por um
lado, porque não determina o tempo que se deve esperar para sua avaliação; por
outro, porque reconhece que teorias degenerativas podem ressurgir ou serem
fundidas, e que é muito difícil decidir entre teorias rivais, uma vez
abandonado o critério dos experimentos cruciais. Em última instância, Lakatos
apela para o "bom senso", e para indicadores como concessão de
verbas, freqüência de realização de congressos para a avaliação dos programas
de investigação. Mas, com isso, faz uma importante concessão à história externa
que contraria o propósito de fornecer critérios mais racionais de avaliação. O
próprio "bom senso", como aponta Feyerabend (1977), não é consensual,
dependendo muitas vezes da área do pesquisador:
"os
juízos básicos de valor aceitos por um experimentalista diferirão dos aceitos
por um teórico (basta ler o que escreveram Rutherford, Michelson ou Ehrenhaft a
propósito de Einstein) (...) o seguidor fiel de Bohr virá a introdução de
modificações na teoria quântica através de prisma diferente de como o verá o
adepto de Einstein" (p.307).
Por
essas razões, Feyerabend conclui que a metodologia lakatosiana é apenas
retrospectivista, não passa de um ornamento verbal, ou seja, não orienta a
prática da ciência e, quando muito, auxilia o historiador a recompor o
desenvolvimento da ciência.
A
QUE SE CHEGA?
Mas
diferenças não devem ofuscar congruências nas concepções do método científico.
Há
pontos comuns entre Popper e Lakatos, de um lado, e Kuhn, do outro. Um dos
principais é o de que enunciados de percepção dependem de teoria. Kuhn enfatiza
mais esse ponto do que Popper, mas este também se encontra em sua obra; ele diz
que não há experiência pura, uma vez que toda ela é organizada por questões,
expectativas e teorias; ele reconhece, inclusive, o importante papel dos mitos
na organização da experiência de mundo, quando não era possível partir de
teorias mais elaboradas sobre a realidade. Reserva, entretanto, um espaço aos
enunciados de observação na avaliação das teorias, uma vez que elas são
testadas a partir dos que proíbem.
Enunciados
de observação são os termos através dos quais a teoria confronta-se com a
realidade, e os básicos são os comumente aceitos; em termos wittgensteinianos,
poder-se-ia dizer que a eles não se aplica a gramática da palavra
"dúvida", embora possam mudar com as teorias. Popper (1963, s/d)
reconhece que não é possível colocar em questão de uma só vez todos os
enunciados básicos de realidade, mas enfatiza muito o papel da crítica no
processo de conhecimento, que se progride por soluções de problemas e que se
pode questionar suposições básicas nesse processo. Acredita, dessa forma, que
se avança ontologicamente com a crítica e a substituição de teorias (que se
aprende com os erros), e defende a idéia da possibilidade de um conhecimento
objetivo, ou de que a aproximação aos fatos vem através das teorias. Isto é, de
que há uma verdade objetiva independente das crenças, mesmo que ela represente
mais um papel regulador no processo de conhecimento do que um termo conclusivo,
já que não se verificam as teorias, apenas se pode aprimorá-las no processo de
refutação. Em resumo, Popper8
recusa o relativismo afirmando a possibilidade de uma discussão racional das
teorias, que permite o avanço para estruturas lingüísticas mais amplas e
aperfeiçoadas (é possível avaliar racionalmente concepções diferentes de mundo,
ou linguagens através das quais se percebe e organiza a experiência). Tais
pontos são bem salientados por Chalmers (1993) na sua apresentação da teoria
popperiana do conhecimento, quando destaca dois sentidos diversos de
"conhecimento" ou "pensamento":
"(1)
conhecimento ou pensamento no sentido subjetivo, consistindo de um
estado mental, ou da consciência ou de uma disposição a comportar-se ou a agir,
e (2) conhecimento ou pensamento num sentido objetivo, consistindo em
problemas, teorias e argumentos enquanto tal. O conhecimento nesse sentido
objetivo é completamente independente da afirmação de qualquer pessoa de que
sabe; é independente também da crença de qualquer um, ou da disposição de
assentir; ou de afirmar, ou agir. O conhecimento no sentido objetivo é o
conhecimento sem conhecedor; é o conhecimento sem um sujeito que sabe"
(p.160).
Lakatos
reproduz a mesma idéia, conforme mostra o próprio Chalmers, que o cita na seqüência:
"...
uma teoria pode ser pseudocientífica mesmo apesar de ser eminentemente
'plausível' e todo mundo crer nela, e ela pode ser cientificamente valiosa
embora ninguém creia nela. Uma teoria pode ter um valor científico supremo
ainda que ninguém a compreenda, ou nem mesmo creia nela. O valor cognitivo de
uma teoria nada tem a ver com sua influência psicológica na mente das pessoas.
Crenças, compromisso e compreensão são estados da mente humana... Mas o valor
objetivo, científico de uma teoria... é independente da mente humana que a cria
ou a compreende" (p.160-161).
Como
conseqüência, conclui Chalmers, para Popper e Lakatos "a história do
desenvolvimento interno de uma ciência será 'a história da ciência
descorporificada'" (p.161).
Kuhn
também assume a idéia da importância do papel da teoria nas experiências, ou de
que um sentido global de mundo participa sempre do das percepções. Critica,
portanto, a possibilidade de uma linguagem neutra na observação, ou o mito de
que a experiência dos sentidos é fixa e neutra. Chalmers ilustra esse ponto
quando procura mostrar a dependência que a observação tem de determinada
teoria, levando em conta uma objeção muito comum dos que defendem a unicidade
do sentido percebido:
"Uma
resposta comum à afirmação que estou fazendo sobre a observação, apoiada pelos
tipos de exemplos que utilizei9,
é que observadores vendo a mesma cena do mesmo lugar vêem a mesma coisa,mas
interpretam o que vêem diferentemente" (p.51). E conclui de forma clara e
incisiva: "O que é dado unicamente pela situação física é a imagem sobre a
retina de um observador, mas um observador não tem contato perceptivo direto com
essa imagem. Quando o indutivista ingênuo e muitos outros empiristas supõem que
algo único nos é dado pela experiência e que pode ser interpretado de várias
maneiras, eles estão supondo, sem argumento e a despeito de muitas provas em
contrário, alguma correspondência entre as imagens sobre nossas retinas e as
experiências subjetivas que temos quando vemos (...) certamente não estou
afirmando que as causas físicas das imagens sobre nossas retinas nada têm a ver
com o que vemos. Entretanto, embora as imagens sobre nossas retinas façam parte
da causa do que vemos, uma outra parte muito importante da causa é constituída
pelo estado interior de nossas mentes ou cérebros, que vai claramente depender
de nossa formação cultural, conhecimento, expectativas, etc. e não será determinado
apenas pelas propriedades físicas de nossos olhos e da cena observada"
(p.52).
Este
ponto foi muito ressaltado por Kuhn e Chalmers, que destaca uma observação
histórica de Kuhn a esse respeito, afirmando que:
"mudanças
nos céus começaram a ser notadas, registradas e discutidas pelos astrônomos do
Ocidente depois da proposta da teoria copernicana. Antes disso, o paradigma
aristotélico havia dito que não poderia haver mudanças na região sobrelunar e,
conseqüentemente, nenhuma mudança foi observada" (p.131).
Feyerabend
(1977) também enfatiza esse ponto à luz de uma teoria gramatical aparentemente
muito próxima da de Wittgenstein, como, aliás, é a desenvolvida pelo próprio
Kuhn:
"
'a linguagem e os padrões de reação que envolvem não constituem meros instrumentos
para descrever eventos (fatos, estados de coisas) mas são, também, modeladores
de eventos (fatos, estados de coisas), contendo-se em sua 'gramática' uma
cosmologia, uma visão ampla do mundo, da sociedade, da situação do homem, que
influencia o comportamento, a percepção....Usuários das gramáticas marcadamente
diversas são conduzidos, pelas suas gramáticas, a diferentes gêneros de
observação'" (p. 349)).
Destaca-se
que a presença de anomalias nas teorias científicas é um fenômeno histórico
comum e não representa por si só a presença de crises teóricas. Mas, se teorias
participam do sentido da percepção, se não há, pois, enunciados de observação
definitivos em que se possa apoiar a ciência, a relação entre enunciados de
percepção e teorias científicas torna-se muito mais complexa. O exemplo mais
ilustrativo é a sofisticação dos testes de "verificação" de uma
teoria. Galileu anexava como apoio de sua teoria do sistema solar um
instrumento de observação, o telescópio, que também implicava teoria no seu próprio
uso, no caso, a óptica. Feyerabend (1977) enfatiza o quanto seu uso foi
contestado na época por seus oponentes, tanto por razões teóricas (ou de
interpretação), quanto de imprecisão das imagens dos primeiros telescópios. E
fala do papel da especulação ou imaginação no novo tipo de experiência
inaugurada por Galileu, muito distante da do senso comum ou do sentido do termo
na filosofia aristotélica.
Latour
e Woolgar (1992), seguindo os passos de Bachelard, salientam o quanto um
laboratório de pesquisa é repleto de instrumentos que participam da construção
dos fenômenos, que levam, por sua vez, ao aparecimento de novos fatos e
materiais; o quanto a experiência científica distanciou-se da experiência
ingênua de mundo, razão que levou Bachelard a cunhar o termo fenomenotécnica
para expressá-la; e como tais instrumentos representam teoria reificada, isto
é, incorporada sem mais discussão.
Tudo
isso mostra que o desenvolvimento das teorias científicas traz a expansão de
uma rede teórica e instrumental que impossibilita a sua falsificação no sentido
restrito do termo. Como diz Feyerabend (1977), apontando para o caráter
histórico-fisiológico da evidência da observação, uma teoria pode ser
incompatível com a observação porque esta pode estar contaminada. Chalmers
(1993) sintetiza bem esse ponto:
"Nada
na lógica da situação requer que deva ser sempre a teoria a ser rejeitada na
ocasião de um choque com a observação. Uma proposição de observação falível
pode ser rejeitada e a teoria falível com a qual ela se choca ser mantida. É
exatamente isto que estava envolvido quando a teoria de Copérnico foi mantida e
a observação a olho nu de que Vênus não muda de tamanho apreciavelmente no
curso do ano, inconsistente com a teoria de Copérnico, foi rejeitada. É isto
também que está envolvido quando descrições modernas da trajetória da Lua são
mantidas e proposições de observação referentes ao fato de que a Lua é muito
maior quando está perto do horizonte do que quando está alta no céu são vistas
como resultantes de uma ilusão, mesmo considerando-se que a causa da ilusão não
é muito bem compreendida. A ciência abunda com exemplos de rejeição de
proposições de observação e retenção de teorias com as quais elas se chocam.
Contudo, por mais seguramente baseada na observação uma afirmação possa parecer
estar, a possibilidade de que novos avanços teóricos revelarão inadequações
nessa afirmação não pode ser descartada. Conseqüentemente, falsificações
conclusivas, diretas, de teorias, não são realizáveis" (p.91).
Na
sua apresentação dos limites do falsificação, Chalmers cita, inclusive, o
próprio Popper:
"A
base empírica de uma ciência objetiva não tem assim nada de 'absoluto'. A
ciência não repousa sobre um sólido leito pedregoso. A audaciosa estrutura de
suas teorias ergue-se como se estivesse sobre um pântano. Ela é como um prédio
construído sobre estacas. Estas são impulsionadas para baixo no pântano, mas
não para alguma base natural ou 'dada'; e se paramos de impulsionar as estacas
mais para o fundo não é porque alcançamos solo firme. Nós simplesmente paramos
quando ficamos satisfeitos pelas estacas estarem suficientemente firmes para
agüentar a estrutura, ao menos por um tempo... é precisamente o fato de as
proposições de observação serem falíveis, e sua aceitação apenas experimental e
aberta à revisão que derruba a posição falsificacionista. As teorias não podem
ser conclusivamente falsificadas porque as proposições de observação que formam
a base para a falsificação podem se revelar falsas à luz de desenvolvimentos
posteriores" (p.94).
Correndo
o risco de certa redundância, conclui-se esse ponto com outra citação de sua
obra sobre as pressuposições teóricas de um enunciado observacional. Tome-se
novamente o exemplo citado da previsão da localização de um suposto planeta no
sistema solar.
"As
premissas das quais a previsão é derivada vão incluir as afirmações
interconectadas que constituem a teoria em teste, condições iniciais tais como
posições anteriores do planeta e do Sol, suposições auxiliares como aquelas que
possibilitam correções a serem feitas para a refração da luz do planeta na
atmosfera da Terra, e assim por diante. Agora, se a previsão que se segue desse
labirinto de premissas revela-se falsa (em nosso exemplo, se o planeta não
aparecer no local previsto), então tudo o que a lógica da situação nos permite
concluir é que ao menos uma das premissas deve ser falsa. Isto não nos
possibilita identificar a premissa errada. A teoria em teste pode estar errada,
mas alternativamente pode ser uma suposição auxiliar ou alguma parte da
descrição das condições iniciais que sejam responsáveis pela previsão
incorreta. Uma teoria não pode ser conclusivamente falsificada, porque a
possibilidade de que alguma parte da complexa situação do teste, que não a
teoria em teste, seja responsável por uma previsão errada não pode ser
descartada" (p.95).
Mas
a diferença entre Popper e Kuhn se acentua quando Kuhn afirma que não há
passagem racional de uma teoria a outra, o que tanto Popper quanto Lakatos
procuram garantir. É esse ponto que representa para ele a incomensurabilidade
das teorias, pois impede sua comparação lógica ou racional:
"Ao
menos para o historiador, diz Kuhn (1962, 1992), tem pouco sentido sugerir que
a verificação consiste em estabelecer o acordo do fato com a teoria. Todas as
teorias historicamente significativas concordaram com os fatos; mas somente de
uma forma relativa (...) Faz muito sentido perguntar qual das duas teorias
existentes que estão em competição adequa-se melhor aos fatos (...) Essa
formulação, entretanto, faz com que a tarefa de escolher entre paradigmas
pareça mais fácil e mais familiar do que realmente é (...) Nenhuma das partes
aceitará todos os pressupostos não-empíricos de que o adversário necessita para
defender sua posição (...) Embora cada um deles possa ter a esperança de
converter o adversário à sua maneira de ver a ciência e a seus problemas,
nenhum dos dois pode ter a esperança de demonstrar sua posição. A competição
entre paradigmas não é o tipo de batalha que possa ser resolvido por meio de
provas" (p.187-188).
Em
outros termos, "quando os paradigmas participam - e devem fazê-lo - de um
debate sobre a escolha de um paradigma, seu papel é necessariamente circular.
Cada grupo utiliza seu próprio paradigma para argumentar em favor desse mesmo
paradigma. Naturalmente a circularidade resultante não torna esses argumentos
errados ou mesmo ineficazes. Colocar um paradigma como premissa numa discussão
destinada a defendê-lo pode, não obstante, fornecer uma mostra de como será a
prática científica para todos aqueles que adotarem a nova concepção da
natureza. Essa mostra pode ser imensamente persuasiva, chegando muitas vezes a
compelir à sua aceitação. Contudo, seja qual for a sua força, o status do
argumento circular equivale tão-somente ao da persuasão. Para os que se recusam
entrar no círculo, esse argumento não pode tornar-se impositivo, seja pela
lógica, seja probabilisticamente. As premissas e os valores partilhados pelas
duas partes envolvidas em um debate sobre paradigmas não são suficientemente
amplos para permitir isso. Na escolha de um paradigma, - como nas revoluções
políticas - não existe critério superior ao consentimento da comunidade
relevante" (p.128).
Persuasão,
portanto, que pode levar a uma nova forma de ver e de pensar o mundo, cuja
passagem, entretanto, está mais próxima da conversão religiosa do que do
convencimento racional. Isto é, a conversão completa seria uma mudança profunda
na "visão" de mundo, havendo boas razões para fazê-la e a
possibilidade de "tradução" de parte da linguagem do outro para o
novo paradigma, mas o acordo entre os grupos rivais nesse processo de
"tradução" não é fundado logicamente, porque o que está em jogo aqui
não são leis, passíveis de correção no interior de cada paradigma, mas
definições que fundamentam os próprios paradigmas.
Como
diz Feyerabend (1977), em defesa de Kuhn (e aparentemente à luz do segundo
Wittgenstein), o que está em jogo não são alternativas definidas por regras,
mas as próprias regras. Em outros termos, teorias incomensuráveis podem ser
refutadas apenas internamente, pois seus conteúdos não são comparáveis. Kuhn
(1962, 1992) cita uma declaração de Max Plank, para ilustrar a situação:
"ao
passar em revista a sua carreira no seu Scientific Autobiography,
observou tristemente que 'uma nova verdade científica não triunfa convencendo
seus oponentes e fazendo com que vejam a luz, mas porque seus oponentes
finalmente morrem e uma nova geração cresce familiarizada com ela"
(p.191).
Alguns
critérios existem, naturalmente, na escolha entre paradigmas:
"Em
primeiro lugar, o novo candidato deve parecer capaz de solucionar algum
problema extraordinário, reconhecido como tal pela comunidade e que não possa
ser analisado de nenhuma outra maneira. Em segundo lugar, o novo paradigma deve
garantir a preservação de uma parte relativamente grande da capacidade objetiva
de resolver problemas, conquistada pela ciência com o auxílio dos paradigmas
anteriores" (idem, p.212).
Mas
esses critérios não fornecem razões suficientes para a troca de paradigmas, nem
significam a possibilidade de um progresso ontológico com a substituição das
teorias. Há apenas progresso na resolução de quebra-cabeças.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRAFIAS
Chalmers,
A.F. (1993). O que é Ciência, afinal? São Paulo: Brasiliense.
Feyerabend,
P. (1977). Contra o Método. Rio de Janeiro: Francisco Alves.
Hempel,
C.G. (1981). Filosofia da Ciência Natural, 3ª ed.. Rio de Janeiro: Zahar.
Kuhn,
T.S. (1962/1992). A Estrutura das Revoluções Científicas, 3a. ed. São
Paulo: Perspectiva.
Lakatos,
I. & Musgrave, A. (1979). A Crítica e o Desenvolvimento do Conhecimento.
São Paulo: Cultrix-Edusp.
Latour,
B. & Woolgar, S. (1997). A Vida de Laboratório: a produção dos fatos
científicos. Rio de Janeiro: Relume Dumara.
Popper,
K. (1959/1999). A Lógica da Pesquisa Científica. São Paulo: Cultrix.
Popper,
K. (1963, s/d). El desarrollo del Conocimiento científico - Conjecturas y
refutaciones. Buenos Aires: Paidos.
NOTAS TÉCNICAS:
1
A abordagem das ciências humanas demandaria a investigação de outro tipo de
material que ultrapassaria os limites deste artigo. A biologia mereceria também
uma discussão à parte, mas pela mesma razão fica de fora.
2
Como diz Feyerabend no Colóquio Internacional sobre Filosofia da Ciência,
realizado em Londres em 1965, que entre outros temas se propunha, justamente, a
discutir as diferenças entre os pensamentos de Kuhn e Popper sobre ciência
(Feyerabend, apud Lakatos & Musgrave, 1979). No mesmo colóquio, o título da
intervenção de Popper é no mesmo sentido: "A Ciência Normal e seus
Perigos".
3
A publicação original é de 1962;
4
(Feyerabend, em Contra o Método, 1977, explora com particular atenção essas
inconsistências).
5
Cuja obra, aliás, representa uma introdução muito clara das várias vertentes
contemporâneas de discussões da metodologia e do desenvolvimento histórico da
ciência.
6
(Em outros termos, Popper dirige os "holofotes" para grandes
acontecimentos em detrimento do cotidiano da história);
7
"O Falseamento e a Metodologia dos Programas de Pesquisa Científica"
(Lakatos & Musgrave, 1979);
8
Conforme citado por Lakatos e Musgrave (1979) em A Ciência Normal
e seus perigos;
9
Chalmers, assim como Kuhn, refere-se a resultados de experimentos da psicologia
da percepção que indicam diferenças de sentidos percebidos sobre o mesmo
material de visão.