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METODOLOGIA CIENTÍFICA NA PRÁTICA, de autoria de Superdotado Álaze Gabriel.
Disponível
em http://metodologiacientificanapratica.blogspot.com.br/
Autoria:
Pedro
Demo - Professor do Departamento de Sociologia da UnB.
RESUMO
O
texto realça a relevância da metodologia científica, tanto no processo de
produção, quanto no processo de formação do conhecimento. No que concerne à
produção do conhecimento, sua importância aponta para a qualidade científica,
que facilmente pode ser mostrada nos grandes clássicos: todos se preocuparam
com a questão da cientificidade. No que concerne à formação, saber construir conhecimento
como qualidade formal e política redunda em aprimoramento visível da autonomia,
um dos horizontes mais importantes do conhecimento da história humana. Assim,
para construir conhecimento com qualidade, é crucial preocupar-se com a sua
cientificidade, no sentido da capacidade de questionar, mas principalmente de
se auto-questionar.
Palavras-chave:
metodologia científica, conhecimento como autonomia, construção de
conhecimento, qualidade formal e política, saber pensar.
INTRODUÇÃO
Grandes
autoras/autores sempre tiveram cuidado metodológico acurado. Lévi-Strauss
(1967, 1976) escreveu dois volumes sobre suas preocupações metodológicas, para
discutir as razões que tinha para considerar suas pesquisas etnográficas como
ciência. Durkheim (1901) escreveu sobre as "regras do método
sociológico", preocupado em fazer da sociologia proposta científica. Weber
(1972) desenvolveu a "sociologia compreensiva", para fundamentar que
caberia à Sociologia método próprio de investigação, no qual coincidiria a
condição de sujeito com a condição de objeto. Foram notáveis as preocupações de
Marx em torno da meta de fazer de sua empreitada plataforma reconhecidamente
científica, construindo a idéia de "materialismo dialético", ao lado
do materialismo histórico. Em seu "testamento metodológico" na Contribuição
para a Crítica da Economia Política (1973), empregou esforço específico
para mostrar como procedia para montar sua teoria da história e da gênese do
capitalismo, aproximando-se fortemente de paradigmas que hoje talvez
anotássemos como positivistas, em particular pela insistência na dialética
"objetivista" (Demo, 1995, p. 104-121). Engels (1971), no afã de
fundamentar o "socialismo científico" contra o "socialismo
utópico", argumentava que a base da cientificidade estaria na análise
objetiva da infra-estrutura econômica, fundamento da superestrutura das idéias,
políticas, morais e utopias (Gorender, 1999). É também muito conhecido o
esforço quase obsessivo de Freud de dotar a psicanálise de bases científicas
adequadas, apelando sempre para procedimentos experimentáveis, a ponto de supor
que em toda neurose devesse ocorrer alguma seqüela física no cérebro (Fachini,
2001; McNamee & Gergen, 1998; Neuburger, 1999). O exemplo mais convincente,
entretanto, é a Escola de Frankfurt, para a qual a preocupação metodológica
talvez tenha sido seu signo maior, em particular com a disputa sobre o
positivismo (Adorno, 1972. Wellmer, 1969). A teoria crítica notabilizou-se não
só por ser teoria alternativa, mas sobretudo por ser olhar metodológico
alternativo, contestando radicalmente a visão positivista e empirista que reduz
a realidade ao que os métodos lógico-experimentais captam (Freitag, 1986).
Santos (2002, p. 25), em obra recente, sublinha de modo sucinto e certeiro esta
mensagem: "A afirmação fundamental do pensamento crítico consiste na
asserção de que a realidade não se reduz ao que existe".
Neste
texto busco traçar argumentação em favor da importância do cuidado metodológico
na formação científica e acadêmica em geral, reforçada hoje por olhares
epistemológicos atuais, muitos dos quais se querem "pós-modernos",
recaindo em modismos fáceis, mas contendo, mesmo assim, pistas muito
interessantes de reconstrução dos ambientes que se querem científicos. De certa
maneira, sugere-se que a qualidade acadêmica de qualquer proposta está, antes
de tudo, na acuidade epistemológica, ou seja, na preocupação com a
possibilidade do conhecimento e da captação da realidade. Nesta polêmica, o
positivismo teria se saído bastante mal, em parte porque representa o estilo
"eurocêntrico", tipicamente colonialista, de fazer ciência (Harding,
1998). A "ditadura do método" é hoje patrimônio difundido nas
ciências sociais (Morin, 1995, 1996; Demo, 2001) e de certa maneira penetrou
nas ciências naturais após a proposta de Prigogine sobre o resgate da
"dialética da natureza" (Prigogine & Stengers, 1997; Prigogine,
1996; De Landa, 1997). No espaço de um artigo não se pode dar conta de tamanha
pretensão, sobretudo tomando em conta sua tessitura polêmica. Não faremos mais
que introduzir a questão do cuidado metodológico e que defino como a
preocupação sistemática em torno da cientificidade do que se produz. Em termos
práticos, ressalto a autoridade do argumento, em desfavor do argumento de
autoridade, preferindo, ostensivamente, a habilidade de fundamentar com
coerência e consistência a textos epistemologicamente despreocupados. O cuidado
metodológico evita certezas, dicotomias banais, evidências empíricas, leituras
apressadas, tomadas parciais de autores e teorias, e toda forma de
superficialidade na produção científica.
DEFININDO
"CUIDADO METODOLÓGICO"
Tempos
atrás, as disputas acadêmicas eram marcadamente "ideológicas",
dividindo marxistas e anti-marxistas, dialéticos e positivistas, estruturalistas
e qualitativos. Hoje, continuam não menos ideológicas, mas o enfoque é outro.
Já não nos preocupa tanto se alguém é "positivista", desde que
apresente produção científica própria de qualidade aceitável. Reconhece-se,
pois, que é possível produzir ciência através de inúmeros métodos e teorias,
porque estes, sendo tipicamente instrumentais, não podem substituir ou
subverter o cuidado com os fins. Esta noção já apontara em metodólogos de
tendência anarquista, como foi Feyerabend (1977, 1979), sempre ligado ao
compromisso de fazer da ciência e sobretudo de seus métodos perspectiva
emancipatória, libertadora (Phillips, 1973) ou de Giere (1999), ao imaginar
"ciência sem leis". Ocorreu, entretanto, alguma evolução, talvez como
conseqüência relativa da tese da "mudança de paradigma" preconizada
por Kuhn (1975): preferimos departamentos universitários mais pluralistas,
porque isto corresponde melhor com a complexidade não linear da realidade, que
jamais poderia ser encerrada em teorias e métodos únicos. Muitos aceitam sem
mais que a tese marxista da "determinação do econômico em última
instância" é excessivamente linear, cujo poder explicativo estaria
possivelmente mais na simplificação excessiva, do que na acuidade
interpretativa (Habermas, 1983; Wright, 1993). Não deprecia esta posição o
mérito da teoria e do método marxista, reconhecidamente eficazes em século e
meio de história (Mészáros, 2002), mas acredita-se que todo paradigma, ao mesmo
tempo que contribui para a institucionalização do conhecimento científico, também
o petrifica e "oficializa", exigindo sua desconstrução.1
Parece
claro que o métier científico supõe liberdade de expressão, porquanto
conhecer é principalmente questionar, não verificar, constatar, afirmar.
Collins (1998), estudando ambientes científicos prévios à modernidade
eurocêntrica, chegou à conclusão de que a China não conservou a dianteira que
tinha à época do surgimento da ciência na Europa porque estava envolvida, como
até hoje, em regimes centralizados que dificultam a fermentação do espírito
crítico. Enquanto isso, proliferavam na Europa cidades-Estado, tipicamente
contestatórias, nas quais era possível confrontar-se com visões consideradas
errôneas, como aquela que via a Terra como centro do Universo. A ciência medra
melhor em ambientes questionadores, pluralistas, nos quais os consensos são
produto da divergência democrática e bem fundada, não de alinhamentos convergentes
(Habermas, 1989). Interessante, ainda, notar que esta liberdade de expressão é
muitas vezes negada para os outros, revelando que o conhecimento científico
está sempre mais próximo do poder do que da verdade, se é que esta existe. Quem
sabe pensar nem sempre aprecia que outros saibam pensar. Conhecimento sempre
foi na história humana também objeto proibido (Rescher, 1987; Shattuck, 1996) e
parceiro da censura.
O
cuidado metodológico tomou, pois, outra direção. Assim como foi pensado a
partir de Descartes, que colocou solenemente a "questão de método",
pareceria unificar definitivamente a ciência, pretensão típica do modernismo
assumida pelas ciências naturais. O cuidado metodológico encerrava-se na visão
de que fazer ciência seria basicamente questão de método e que este seria
lógico-experimental. Imaginava-se que, ao final do percurso (método é caminho),
poderíamos encontrar a verdade, ou devassar a realidade em seus arcanos mais
profundos e definitivos. Havia nesta idéia algo pertinente: retirar a ciência
da sacristia, comandada por referências transcendentais como teologia,
filosofia, religião, senso comum, sabedorias, todas mais presas ao argumento de
autoridade, do que à autoridade do argumento.
A
ciência moderna derrubou todas as autoridades vigentes e fez-se "a"
autoridade, substituindo uma transcendência por outra, já que, imbuída de
universais eternamente válidos, o que teria ficado para trás era aquela
eternidade esotérica, do outro mundo, entrando em seu lugar outra eternidade da
ciência como tábua de salvação natural, prometendo, entre outras coisas, a
emancipação da humanidade. Este projeto não se completou, como não cansa de
asseverar Habermas (1982; 1989; 1997; 1997a), e segundo muitos outros autores é
impraticável na visão eurocêntrica de mundo, em particular no liberalismo
capitalista (Jameson, 1996. Sachs, 2000). Como afirma Harding (1998), o
eurocentrismo é incapaz de praticar a "standpoint epistemology"
(epistemologia culturalmente plantada, ou multicultural): não consegue
interpretar o outro a partir do outro, ainda que este intento, naturalmente,
não se efetive propriamente, já que interpretamos de dentro para fora
inevitavelmente. Desta "boa intenção" metodológica, entretanto,
surgiram atualmente as discussões multiculturais, tendo como um dos frutos mais
interessantes "reconhecer para libertar", como quer Santos (2003).
A
unicidade da ciência ao estilo positivista detém reducionismo violento,
tornando o método não caminho para a construção aberta do conhecimento, mas
beco sem saída. A realidade é aquela que o método imagina captar, fazendo-se de
mero meio fim de tudo. Alguns teóricos preconizaram método próprio para as
ciências sociais, como Weber e a teoria crítica. Esta reservou a dialética
apenas para fenômenos histórico-sociais, desfazendo a pretensão anterior
marxista da "dialética da natureza". Por supina ironia, foi
reconduzida ao debate por um químico e matemático, prêmio Nobel, Prigogine,
lançando polêmica furiosa em torno da demarcação científica, pois, ao contrário
da história anterior, se houver unidade da ciência, viria da lógica dialética,
não da lógica analítica.
O
que estou chamando aqui de outra direção não é propriamente a idéia de que
métodos mais usados nas ciências sociais seriam agora "o" paradigma
global, mas que, reconhecendo-se a complexidade não linear ambivalente da
realidade (Demo, 2000), nenhum método e nenhuma teoria podem ser considerados
mais que simples instrumentos, sempre incompletos, de captação. O que poderia
unificar a ciência não são propostas unitárias, mas a preocupação pluralista em
torno da busca da realidade, considerada apenas aproximativa. O teorema da
incompletude de Gödel foi passo extraordinário nesta direção, porque mostrou
que a própria matemática, a partir de certo nível de elaboração, apresenta-se
como construção humana interpretativa e não pode ser fechada em sistema
peremptório e linear (Hofstadter, 2001). A discussão acalorada em torno da
"inteligência artificial" também contribuiu para este tipo de
abertura, à medida que se superou a noção de inteligência como apenas lógica,
seqüencial, algorítmica, reversível, como são os procedimentos de computação
(Dreyfus, 1997; Penrose, 1994). Nossas máquinas ainda não sabem pensar
semanticamente falando, embora possam desempenhar-se bem ao nível sintático,
sendo talvez necessário perscrutar os mistérios da física quântica, para
atingir graus maiores de liberdade de expressão (Satinover, 2001).
Descobriu-se
que saber pensar precisa de método claramente, mas como instrumento, não como
razão de ser (Demo, 2002). Por isso, aceita-se que todo ser humano pode saber
pensar, sem ter formação científica específica, o que tem levado, por exemplo,
cientistas ocidentais a procurar contato com culturas alternativas, como as
orientais, que possuem sua sabedoria no trato das emoções humanas, para aludir
a este tipo de perspectiva (Dalai Lama & Goleman, 2003; Varela &
Hayward, 1999; Varela, 1999). O fenômeno da "virtualidade", hoje bem
mais perceptível por conta do ciberespaço, também deixou seu traço profundo nesta
discussão, à medida que garante como presente algo que não é físico: o mundo
virtual não é físico, mas é real. Para a "res extensa" de
Descartes, seria heresia. Mas todos já nos acomodamos com esta idéia, e vamos
aos poucos admitindo que a realidade, como queria a teoria crítica, não se
esgota no que existe (Kaku, 2000; Gribbin, 2001).
Esta
outra direção, assim, evoluiu para o reconhecimento de que em face da realidade
complexa não linear ambivalente, o que une é a mesma busca, mas jamais o mesmo
encontro. Persiste a pretensão de unificar pela via das ciências naturais. Um
dos esforços recentes nesta linha é a "consiliência" de Wilson
(1998): repassa praticamente todos os ramos do conhecimento, desde matemática e
física, passando pelas ciências sociais, culturais e mesmo espirituais, para
tentar fundamentar que esta complexidade poderia ser tratada pelo mesmo método
unitário. Neste contexto, persistem também as esperanças da "everything
theory" (teoria de tudo), resgatando o sonho moderno de que a realidade
seria complexa apenas na superfície; ao fundo, o método analítico descobriria a
realidade absolutamente simples, capaz de ser arranjada em fórmula matemática
única (Barrow, 1994; Gribbin, 1998). Entretanto, a visão da complexidade ou do
caos estruturado parece estar se impondo (Demo, 2002; Morin, 2002; Prigogine,
1996; Moles, 1995; Holland, 1998), reconhecendo-se que a realidade é dinâmica
sobretudo não linear e ambivalente, não se compondo inteiramente com
expectativas lógicas (Haack, 2002).
O
lado linear existe, certamente, e aparece na noção de que o caos seria
"estruturado" em toda desordem existe alguma ordem e vice-versa.
Entretanto, a face histórica e criativa, emergente, da realidade comparece em
processos desalinhados, nas "estruturas dissipativas" (Prigogine,
1996), ou na perspectiva fortuita, casual. Nossas tecnologias são lineares e
assim as queremos, para serem confiáveis: ninguém viajaria em avião não linear.
Esta mesma expectativa existe com respeito ao computador: não estamos propriamente
interessados que ele "interprete" nossos textos, mas apenas que
processe e armazene. Se reuníssemos, a título de exemplo, 20 pessoas em torno
de mesa redonda e contássemos para a número um uma história, que contasse para
a número dois, até a número 20, a história chegaria talvez irreconhecível,
porquanto não sabemos apenas "reproduzir" a história. Ao contar uma
história, passamos a fazer parte dela como intérprete, ou seja, a reconstruímos
na condição de sujeito comunicativo. A dimensão semântica, tipicamente não
linear, aparece como predominante sobre o espaço sintático. Sendo o computador
apenas sintático (algorítmico, seqüencial, reversível), não entende a
semântica, pois não é figura "autopoiética".
As/os
biólogas/biólogos incrementaram sobremaneira esta discussão metodológica,
falando-se hoje abertamente de epistemologia biológica, para aludir a dois
horizontes entrelaçados e bem diferentes da dinâmica cerebral. Maturana e
Varela (1994) conceberam a categoria da "autopoiese", para designar que
todo ser vivo funciona de dentro para fora, como sujeito que reconstrói a
realidade. Esta não se impõe de fora, porque o cérebro não acessa diretamente a
realidade, mas pela via da interpretação subjetiva. O que entra no cérebro,
entra por dentro e é por isso que o ser vivo, em ambiente novo ou hostil, não
se acomoda passivamente, mas consegue elaborar resposta reconstruída e por
vezes mesmo impor-se ao contexto, como é o caso do ser humano que acabou
tornando-se, como diz Klein (2002), "força geológica". O cérebro é
tipicamente entidade complexa não linear, a começar por ser base física que
gera fenômenos não físicos. Como falam Edelman & Tononi (1999) a
"matéria se torna imaginação" pela via da emergência, produzindo
saltos tipicamente não lineares: pareceria que o depois é bem diferente do
antes, para além de qualquer alinhamento causal. Norretranders (1998) sugere
que "o mais é diferente", não apenas maior.
Segundo
Maturana (2001; Demo, 2002), o sujeito cognitivo, a rigor, não tem como
distinguir definitivamente entre realidade e alucinação, porque a interpretação
é naturalmente auto-referente. Acabamos fazendo alguma distinção relativa na
prática humana, na qual sempre aparecem padronizações consideradas normais. O
desafio epistemológico tornou-se, assim, mais contundente, porque se desfez a
expectativa clássica da "evidência empírica", ainda comum em
processos empiristas e positivistas de pesquisa. Nem todo positivismo esposa a
banalidade da evidência empírica, como foi o caso notório de Popper (1959) e
sua proposta da falsificabilidade: esta precisa apenas de um caso empírico
negativo, não de sua generalização indutiva, sempre inviável prática e
logicamente (Demo, 1995, 2000a). De todos os modos, desfez-se a noção de que,
analisando a realidade da superfície para suas profundezas, lá embaixo
encontraríamos algo simples e que teria explicação simples, postulando
confluência não problemática entre epistemologia e ontologia.
Segundo
biólogas/biólogos, o cérebro humano procede de modo ambivalente. De um lado, é
máquina padronizadora, bem como imaginava Lévi-Strauss, quando sugeria que a
atividade do espírito é a de impor formas a conteúdos, ressaltando neles suas
invariantes (Demo, 1995). Perante o desconhecido, o ser humano tem como
primeira reação procurar o que haveria de conhecido, familiar; a segunda reação
é a de ressaltar o que haveria de repetido, recorrente; e a terceira, sobretudo
se as duas anteriores não se mostrarem aptas, é de impor uma ordem à desordem
por iniciativa do sujeito interpretativo, e chamamos a isto de teoria. De fato,
entendemos melhor o que se apresenta como linear, lógico, recorrente. Não
conseguimos produzir idéia caótica de caos, porque, sendo idéia, tem contornos
ordenados. A matemática aparece, por isso, como procedimento metodológico fundamental,
embora, no fundo, por esta via, não entendamos a dinâmica, mas a regularidade
da dinâmica. Parece ser esta a via própria do conhecimento científico: fincado
na lógica e no experimento testável, reduz a realidade a invariantes
metodicamente manipuláveis. Formalizar é o procedimento crucial (Demo, 2001a).
De outro, porém, o cérebro possui mistérios pouco perceptíveis ainda, de estilo
emergente e não linear, e que aparecem em processos mais profundos de
aprendizagem. Por exemplo, crianças aprendem rapidamente língua estrangeira,
quando brincam todos os dias com outras, sem terem noção de lógica, gramática,
estudo sistemático, etc. Ocorre o mesmo com animais, sobretudo mamíferos:
aprendem sem estudar e tornam-se autônomos (ou morrem). Talvez a face mais
visível desta aprendizagem não linear compareça na comunicação humana:
tipicamente ambivalente (entender-se e desentender-se são sempre possíveis),
composta de linhas de força nas quais não falta a dimensão do poder, é capaz de
perscrutar naturalmente as entrelinhas, os silêncios, as ausências, os meneios,
as insinuações, etc.
Certas
correntes do pós-modernismo retiram desta ambivalência não linear conclusões
relativistas que introduzem na metodologia a zorra irrefreável (Sokal &
Abricmont, 1999; Demo, 2001). De fato, os universais do conhecimento
eurocêntrico são sobretudo "eurocêntricos", já que as validades não
podem excluir as facticidades (Habermas, 1997, 1997a), ou sua
"multiculturalidade" (Santos, 2003). A lógica é naturalmente circular
(Lyotard, 1989), porque sendo forma reversível, não adere a conteúdos e por
isso não faz história. Para definir conceitos é inevitável lançar mão de
conceitos ainda não definidos, dentro do que se tem chamado de circularidade
hermenêutica, própria de todo ato interpretativo (Gadamer, 1997; Appel, 2000,
2000a). A história, entretanto, por admitir apenas processos relativos
(incompletos e transitórios) não é "relativista", pois vale
concretamente, como vale nossa vida finita. O relativismo é incoerente, não
apenas logicamente (não se pode afirmar que "tudo é relativo"), mas
sobretudo socialmente, porque a sociedade possui nítida vigência histórica
precisamente em sua relatividade. Esta parte do pós-modernismo é trivial e no
fundo irresponsável metodologicamente. Se esta direção não faz sentido, toma
todo sentido outra direção: sendo tão complexo captar a realidade complexa, o
cuidado metodológico precisa ser redobrado. Não havendo confluência não
problemática entre epistemologia e ontologia, a possibilidade do conhecimento
não se desfaz, mas precisa ser vista, não só com base no questionamento
impiedoso como fez o modernismo, mas sobretudo com base no auto-questionamento,
procurando-se avaliar o que se capta e o que se deturpa no processo de
reconstrução da realidade.
QUALIDADE
METODOLÓGICA
Na
história da metodologia científica, a figura de Bachelard tornou-se emblemática
por ter mostrado, com afinco inaudito, o quanto é fundamental preocupar-se com
o processo de construção do conhecimento, com base principalmente no
"corte epistemológico" (1971, 1973; Canguilhem, 1977). Santos (1989,
1995) refez mais recentemente este caminho, reclamando do excesso no corte
epistemológico e sugerindo um segundo corte, para repor a importância do que se
tem visto sempre como rejeito científico, ou seja, saberes alternativos,
inclusive o senso comum. Assim mesmo, cabe reconhecer que Bachelard consagrou a
noção de que a qualidade do conhecimento depende, antes de tudo, da qualidade
metodológica. Quem não pára para pensar e repensar sobre como faz ciência,
certamente não faz ciência, em duplo sentido: ou não faz ciência, porque não
sabe tratar o método; ou não faz ciência, porque o mistifica, sobretudo no
plano positivista. Por "qualidade metodológica"2
podemos entender o cuidado investido na reflexão e na prática do conhecimento,
tanto no sentido pessoal (como cada qual se ajeita frente ao desafio
epistemológico), quanto no sentido intersubjetivo (como a "comunidade
científica" discute e questiona o conhecimento científico). Estando a
coerência da crítica na autocrítica sobretudo para superar a contradição
performativa é fundamental construir postura ao mesmo tempo crítica e
autocrítica, tanto para evitar os becos sem saída do modernismo (na sombra da
autoridade do argumento, recriar o argumento de autoridade), quanto para não
enredar-se nas banalidades do pós-modernismo (por ser tudo tão relativo, já não
vale mais nada).
Entre
nós ocorreu evolução recente das mais interessantes, quando o CNPq resolveu
instaurar o Programa de Bolsas para Iniciação Científica (PIBIC). Hoje estamos
seguros de que este aluno que pesquisa é quem verdadeiramente aproveita os
cursos (Calazans, 1999), porque torna-se capaz de superar o
"instrucionismo", quer dizer, o mero ensino de fora para dentro.
Foram na verdade sobretudo biólogas/biólogos que se voltaram contra o
instrucionismo, porque o ser humano não pode, em si, ser instruído, treinado,
por conta de sua tessitura autopoiética (Maturana, 2001; Edelman & Tononi,
2000; Tapscott, 1998). A aprendizagem correta é a reconstrutiva política, que
põe a/o aluna/aluno no centro das atenções, fazendo-o pesquisar e elaborar, não
apenas escutar aulas, tomar nota e fazer prova. Com isto, pesquisa passou a ser
vista como "ambiente da aprendizagem", assumindo duplo valor:
pesquisa é ferramenta essencial para fabricar conhecimento com mão própria; mas
é igualmente estratégia pedagógica imprescindível para a formação propriamente
dita da/do aluna/aluno, impulsionando especialmente o saber pensar (Demo, 1996;
1994). O processo de pesquisa é apto a desenvolver o espírito crítico e a
autonomia, no eco de Paulo Freire, quando colocava com grande força a
politicidade da educação (Demo, 2002a). Dizia ele enfaticamente: a/o boa/bom
professora/professor é quem influencia a/o aluna/aluno de tal modo que este não
se deixe influenciar. Reclamava aquela influência não linear, capaz de ser
sustentáculo da emancipação. Normalmente, toda influência, contendo sempre o
lado de cima para baixo, tenderia a ser "castradora". Mas, sendo
igualmente dinâmica não linear, complexa, dialética, pode acolher outras
evoluções dinâmicas, também de baixo para cima e de dentro para fora, desde que
a/o professora/professor aposte na autonomia da/do aluna/aluno. A influência
que a/o professora/professor exerce deve poder libertar, não apequenar. Para
tanto, atividades como pesquisa e elaboração própria parecem ser decisivas.
Observando de perto, porém, este contexto está marcado profundamente pelo
cuidado metodológico. À medida que a/o aluna/aluno é levado a "fazer"
conhecimento, saindo da posição de quem apenas adquire, recebe pela via da
reprodução, aprende a preocupar-se com metodologia científica. Resultado mais
fundamental disso pode ser que comece a diferenciar níveis distintos de
qualidade do conhecimento disponível, teorias mais e menos consistentes,
táticas mais e menos sustentáveis de produção e tratamento de dados,
elaborações mais e menos originais dentro das polêmicas vigentes.
Por
certo, saber pensar não implica apenas a reconstrução do conhecimento, mas é
ainda alicerce substancial da cidadania bem plantada, que sabe usar a
"vantagem comparativa" mais decisiva hoje, que é conhecimento crítico
e criativo (Diamond, 1999). Vantagem comparativa é termo dúbio, porque
subserviente ao mercado, mas detém mensagem das mais potentes: talvez a maneira
mais efetiva que temos de poder mudar a história, em especial para que seja
história própria individual e coletiva, é a capacidade de reconstruir
conhecimento com qualidade formal e política. No plano da qualidade formal está
em jogo a habilidade metodológica mais que tudo. No plano da qualidade política
trata-se de saber usar conhecimento para as mudanças que a sociedade requer. O
fato de que a universidade de ponta esteja cada vez mais atrelada às forças do
mercado, também para que possa aceder a financiamentos consideráveis, não
retira o argumento (Aronowitz, 2000). Ocorre que a importância do conhecimento
está em sua potencialidade disruptiva: sua qualidade mais profunda não é
constatar, afirmar, verificar, mas questionar. Sua dinâmica primeira é
desconstrutiva. Na volta, reconstrói o conhecimento, mas sempre provisoriamente
(Demo, 2001), estabelecendo ambiente de dinâmica constante. Conhecimento
repassado, transmitido já é apenas informação. Aí, pode ser reproduzido,
armazenado, transportado. Como potencialidade disruptiva só existe na dinâmica
e é por isso que pesquisa passou a ser chave da aprendizagem adequada. Embora
este tipo de aprendizagem não seja exaustivo, já que é marcado pela
formalização metodológica,3
é imprescindível que seja bem feito, porque dele não depende apenas o
desenvolvimento do conhecimento científico, mas sobretudo a formação autônoma
dos alunos.
Referência
importante da qualidade metodológica é a polêmica em torno do reducionismo do
conhecimento. Aceitando-se que a realidade seja complexa não linear, seja
unidade de contrários, não a podemos acomodar por inteiro em nenhuma teoria e
nenhum método a capta satisfatoriamente. Assim, em parte, este reducionismo é
natural, inevitável. Ao ordenar a realidade, a artificializamos também, como
anotara bem Foucault com sua idéia da "ordem do discurso" pode haver
aí mais ordem que realidade (2000). No fundo, reconhecemos que o intento de
formalização metodológica exerce sobre a realidade alguma violência analítica,
porque a força a caber em estruturações metódicas, úteis para facilitar o
manejo categorial, mas possivelmente estranhas à dinâmica complexa não linear.
Formalizar é sempre também alinhar. Alinhando realidades não lineares, as
reduzimos a expectativas de ordenamento que podem ser muito mais nossas do que
da realidade. Isto já se aceitava quando víamos em dados um construto, um
resultado teórico e metodológico, assim como é mister ver nas teorias um modelo
simplificado. Explicar é inapelavelmente também simplificar. Se apenas
complicássemos, teríamos emaranhado ainda mais confuso e ambíguo. Bachelard
falava de "demissão teórica", referindo-se ao empirismo e positivismo
que não se apercebiam de que em suas "evidências" a única coisa mais
evidente era o pano de fundo teórico implícito. Fazemos implicitamente teoria
também quando a negamos ou camuflamos. É melhor, pois, fazê-la bem,
explicitamente. O reducionismo torna-se problema a partir de certo ponto,
quando já deturpamos mais do que captamos a realidade. Como este ponto não pode
ser definido adequadamente, a demarcação científica passou a considerar como
seu critério principal a "discutibilidade" formal e política do
discurso científico (Demo, 1995, 2000a). Por coerência, não pode ser critério peremptório.
Nem de longe resolve tudo, mas parece ser o mais congruente com aquele
conhecimento que se diz científico porque prefere a autoridade do argumento.
A
discutibilidade formal significa que o discurso científico, para ser amplamente
discutível, precisa estar bem feito do ponto de vista formal: coerente,
consistente, sistemático. Somente o que é bem feito pode ser bem discutido.
Porque tudo é discutível em ciência, não quer dizer que qualquer coisa valha.
Ao contrário, é mister tanto mais argumentar bem, tendo em vista que as bases
são sempre facilmente falíveis. A discutibilidade política aponta para
consensos obtidos pela via da negociação aberta, já que, para um discurso
científico valer, não basta que seja lógico. Precisa ser aceito pela intersubjetividade
em jogo. Antigamente víamos nisso fator externo, intruso, considerado pelo
positivismo como invasão indevida. Hoje, após a discussão em torno da
politicidade do conhecimento, a partir de Foucault e, depois, com a pesquisa
pós-colonialista (Harding, 1998; Demo, 2002a), é possível arriscar dizer que a
face política lhe é intrínseca. Esta idéia já está contida, no fundo, no
conceito de "dialética da natureza", como queria Prigogine, embora
não se possa deixar de anotar o quanto continua polêmica. A validade puramente
lógica é fantasiosa, porque lógica não estabelece validade histórica, mas
apenas relações de coerência. É interessante que esta discussão amadureceu por
conta de um autor considerado, ao mesmo tempo, promotor e detrator dela,
Habermas. As condições ideais do discurso supõem a liberdade não tolhida de
expressão, não apenas a ilação lógica, algo que pareceria facilmente aceitável.
Entretanto, Habermas nega a comunicação estratégica, imaginando que comunicação
somente ocorre quando totalmente desimpedida do ponto de vista político.
Sobretudo Bourdieu (1996, 1996a) se insurgiu contra esta pretensão, porque o
discurso humano não se dá em situações ideais, mas em sociedade, na qual, sendo
campo dialético de força, toda comunicação é também pervadida de influências
recíprocas. Sfez (1994) chega a falar de "mofo kantiano" para denotar
esta impossível assepsia social. Validade a priori sempre esconde seu
dono. Assim, parece que a demarcação científica terá que aceitar também
critérios políticos, porque não são, de modo algum, externos. Poder não foi
introduzido no conhecimento por via artificial, porque sempre ambos moraram
juntos, na mesma casa.
Esta
ambivalência reforça tanto mais o critério da discutibilidade: não havendo
critério objetivo, peremptório, definitivo, a salvaguarda só pode ser relativa
e aparece como vigilância eterna contra deturpações excessivas. Não se pode
encobrir que o critério da discutibilidade é ambíguo, como toda comunicação
humana: nenhuma discussão, em si, termina, porque seria impraticável argumento
final. A autoridade do argumento nunca é final, mas é a maior e a melhor que
temos. A discussão aberta, formalmente cuidadosa e politicamente democrática
pode ser o móvel mais frutífero de reconstrução de conhecimento científico.
Olhando ainda mais a fundo, a autoridade do argumento é a "violência"
que o conhecimento científico possui, tanto mais formidável porque se constitui
em gesto de dentro para fora. Trata-se de convencer, sem vencer, como já queria
a velha "retórica", hoje desvirtuada nas mãos de
"políticos" que fazem dela apenas argumento de autoridade (Perelman
& Olbrechts-Tyteca, 1996; Perelman, 1997; Toulmin, 2001). A pretensa
dedução inevitável do silogismo medieval argumentar de tal modo que o adversário
tenha que capitular poderia ser superada pela construção de consensos sempre
periclitantes, mas democráticos. E isto recolocaria outro tema fundamental de
hoje: a ética do conhecimento (Demo, 2001) e que aqui não vamos desenvolver.
Neste
horizonte tão complexo, coloca-se a necessidade da pesquisa qualitativa, como
proposta de formalização jeitosa para que seja menos deturpante da realidade
imprecisa (Salomon, 2000). Não substitui a quantitativa, porque toda realidade
social é, ao mesmo tempo, quantitativa e qualitativa, não cabendo qualquer
dicotomia (Demo, 2001a), mas quer ir além dela, para perscrutar as entranhas
intensas da realidade extensa. Ao contrário do que por vezes se coloca, o olhar
qualitativo não pode desprezar o cuidado metodológico, como se método se fizesse
pelo caminho, ou fosse algo secundário e supletivo, ou comparecesse como
incômodo indesejável. A pesquisa qualitativa é muito mais difícil e complexa,
precisamente porque busca reduzir ao mínimo possível o reducionismo implícito
na formalização metodológica. Por exemplo, ao apostar na interpretação de
fenômenos intensos como subjetividade, comunicação humana, felicidade,
participação, etc., corre tanto maior risco de devassidão metodológica, já que
o reteste se torna impossível (Demo, 2001b). Entretanto, é possível, como anota
Thompson (1995; 2001) dar sustentáculo científico à interpretação, desde que se
tenham cuidados metodológicos adequados, entre eles a formalização ao mesmo
tempo severa e flexível.
É
de bom aviso, ainda, que se mesclem procedimentos hermenêuticos com outros mais
formais, para que se possa tornar a discussão mais acessível (Turato, 2003).
Toda interpretação, obviamente, é objeto de interpretação este círculo
hermenêutico é inescapável. De novo, a discutibilidade parece ser o contexto
mais promissor de demarcação científica, porque não colhe apenas os lados mais
formais, mas inclui naturalmente os consensos possíveis com base na autoridade
do argumento. Mais que em qualquer outro paradigma, a pesquisa qualitativa se
põe o desafio de captar com a maior precisão possível o impreciso. Há aí clara
dissonância entre epistemologia e ontologia, mas pode ser relativamente
contornada pela via da formalização flexível, discutível.
"Discutível" não significa aqui somente "frágil", mas sobretudo
critério de demarcação científica. Embora possa ter parentesco com a
falsificabilidade de Popper, desta diverge profundamente por incluir a
qualidade política.
Continua,
pois, de pé que ciência é questão de método. O conhecimento científico é científico
porque feito sob estratégia metódica controlada. O que mudou é o controle. Não
o vemos como carapuça formal, objetiva e neutra. Esta pretensão exauriu-se.
Vemos como trabalho intersubjetivo, intensa e livremente comunicado, no qual os
pesquisadores se controlam mutuamente, dentro de parâmetros naturalmente
discutíveis. Não sendo possível estabelecer nada de peremptório, a relação
intersubjetiva precisa ser democrática, para que possa prevalecer a autoridade
do argumento. O positivismo via nesta apenas a "ditadura do método".
Hoje isto não basta, porque método é meio. A própria história colonialista do
conhecimento científico eurocêntrico recomenda não acreditar tanto em método,
porque sob sua pretensa neutralidade e universalidade escondem-se prepotências
predatórias incalculáveis. Mas não é o caso abandonar o cuidado lógico.
Formalizar o objeto é ainda preocupação fundamental para a reconstrução do
conhecimento. Entretanto, é impossível separar a qualidade metodológica do
conhecimento da qualidade humana de quem o faz.
Bem
considerada, a qualidade metodológica pode significar a preocupação em torno da
cidadania fundada na autoridade do argumento e que mais facilmente levaria à
noção democrática de mudar a sociedade de tal forma que prevaleça o bem comum.
Mais facilmente, o conhecimento científico faz coro com o liberalismo e sua
elite econômica e política, atingindo na assim dita sociedade intensiva de
conhecimento as raias da paranóia, quando passa a servir quase exclusivamente à
competitividade globalizada. Este reconhecimento é motivo a mais para rejeitar
que na universidade apenas se transmita, reproduza conhecimento, porque
coincide com a condição histórica de sucata. É preciso fazer conhecimento
próprio, sem xenofobia, mas com toda a autonomia possível. Para tanto,
qualidade metodológica é essencial.
PARA
CONCLUIR
O
cuidado metodológico desborda a prática clássica dos rigores formais, por mais
que este olhar continue fundamental. Sob a ótica do saber pensar, o cuidado
metodológico constitui-se em procedimento formativo dos mais indispensáveis,
porque pode contribuir para a predominância da autoridade do argumento sobre o
argumento de autoridade. Ao mesmo tempo, assim considerado, contribui para
atitude não apenas crítica, mas principalmente autocrítica, apanhando aí legado
pertinente do pós-modernismo em sua crítica ao colonialismo do conhecimento
eurocêntrico. Cursos que não acentuam o cuidado metodológico facilmente se
perdem em ativismos ou em coletas justapostas de teorias e métodos, sem a devida
reflexão e reconstrução própria. Assim como é possível a/o
engenheira/engenheiro que saiba muita matemática, mas, a rigor, não sabe
pensar, é possível a/o socióloga/sociólogo que viva de indigestão teórica. Os
dois casos têm em comum o procedimento reprodutivo, perdendo-se aí por completo
a potencialidade disruptiva do conhecimento crítico e criativo. Pesquisa, por
isso, é vista hoje como ambiente próprio da aprendizagem reconstrutiva
política. Possivelmente conhecimento é a moeda principal desta sociedade
intensiva de conhecimento. Não pode ser encurtado, banalizado, aligeirado.
Precisa de dedicação metodológica cada vez mais exigente, tendo em vista que o métier
científico se torna, cada dia mais, não facilitado, mas muito mais pretensioso
e complexo. Dar conta de realidade complexa não linear reclama habilidade
metodológica à flor da pele. Preferir a autoridade do argumento ao argumento de
autoridade pede não só competência metódica, mas igualmente qualidade política.
A
prática da pesquisa em alunos (projeto de iniciação científica do PIBIC, em
especial) tem demonstrado não só a importância de ser fazer ciência, como
igualmente sua face formativa, educativa e emancipatória. A arte de saber
pensar é em grande parte a arte da cidadania. Cuidado metodológico não se
encerra na lide científica, mas constitui profundamente o processo formativo de
alunas/alunos e professoras/professores.
NOTAS
1
"As instituições humanas são inerentemente conservadoras. Lei, religião,
costumes sociais, todas as instituições humanas estão enraizadas na necessidade
de prover base firme e estável para as interações sociais. Como sistemas
biológicos, as sociedades humanas buscam fazer o melhor possível para evitar
mutações e guardar as formas básicas intactas (…) Mas há uma instituição humana
que não é conservadora. Esta instituição é a ciência. Por sua própria natureza,
a pesquisa científica está sempre mudando a sociedade ao descobrir novas
coisas, inventar novas idéias. Enquanto todas as outras instituições são
essencialmente voltadas para trás, tentando preservar o passado, a pesquisa
científica está inerentemente voltada para a frente, buscando o futuro,
tentando achar o que poderia existir depois da próxima colina" (Bova,
1998, p. 244).
2
O conceito de "qualidade" não é evidente. Para evitar polêmicas
desnecessárias, tomo qualidade como termo aproximado de cuidado metodológico,
sinalizando dimensões da intensidade e profundidade em textos com pretensão
científica (Demo, 2001a). Para dar exemplo direto: não é qualitativo o texto
baseado em argumento de autoridade, enquanto é qualitativo o texto fundado na
autoridade do argumento, porque este pode ser intenso e profundo, ao mesmo
tempo coerente e aberto, bem comunicado e denso. Qualidade metodológica
significa o apreço sistemático pela argumentação mais bem fundamentada
possível.
3
Edelman & Tononi falam de aprendizagem selecionista, referindo-se aos
processos evolucionários naturais, nos quais ocorrem percursos de aprendizagem
profunda, sem o recurso a formalizações explícitas, como ocorrem em
instituições educacionais. Aprendemos na vida sempre, como fomos dotados, pela
evolução, de órgãos e processos muito complexos de aprendizagem, no fundo
comuns a todos os seres vivos.
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